Saturday 16 May 2009

Archivo pittoresco 1866



Archivo pittoresco
Published by Tip. de Castro Irmão., 1866
vol. 9, p. 24

Quando publicamos no vol. VII, a pag. 245, um artigo do sr. J. M. D. de Oliveira Travassos, descrevendo o sitio de Monserrate e o seu antigo palacio e quinta, promettemos mostrar em gravura aos nossos leitores o palacio no seu estado actual de restauracao e engrandecimento. Vamos hoje cumprir essa promessa.

Uma lenda popular de antigas eras diz que sob о dominio dos árabes ja era cultivada e habitada essa collina graciosa que resalta da serra de Cintra, e agora vemos transformada em jardim de mimosas flores. Era entáo, segundo a lenda, uma quinta de um musarabe, fidalgo christão que vivia tranquillamente em umas casas no alto da quinta, onde ora campeia o formoso palacio acastellado.

Nao obstante a sua sujeição aos moiros, aquelle fidalgo, sentindo correr-lhe nas veias sangue illustre dos godos, era altivo e mal soffria o jugo tyrannico dos conquistadores da sua patria. Assim, pois, estes sentimentos, excitados constantemente pelo odio contra os inimigos da fé christã, vieram a romper em discordias com o alcaide moiro do visinho castello de Cintra.

Como ambos se jactavam de serem cavalleiros esforçados e briosos, nao quiz o sarraceno prevalecer-se da auctoridade para se vingar dos desdens e desprezos do seu rival. Confiou, pois, a vingança ao valor de seu braco, e desafiou o christão a medir-se com elle em duello a todo o transe. Foi o alcaide procurar o fidalgo à sua propria casa, e ao lado d'ella, no alto da collina, travaram encarniçado combate. Eram tão eguaes nos dois campeões a valentía e a coragem, que por algum tempo esteve indecisa a victoria, até que, em fim, a sorte das armas, ou a fortuna, que é cega, a decidiu a favor do alcaide. O pobre fidalgo christão caíu morto aos pés do vencedor.

Como é bem fácil de crer, este acontecimento lancou em grande consternaçào as familias musarabes que habitavam na próxima villa de Cintra. Reputando aquella morte um verdadeiro martyrio, começaram a visitar a sepultura do martyr, banhando-lh'a com lagrimas, e orando fervorosamente para que a Virgem Maria, condoendo-se da triste escravidâo em que viviam, os libertasse de tao abominavel dominio.

Nao tardou muitos annos que a espada victoriosa de Alfonso Henriques expulsasse os moiros da villa de Cintra, hasteando ao mesmo tempo nas torres do seu castello o glorioso pendào das quinas.

Vencidos os inimigos da Cruz, lembraram-se alguns fiéis de erigir urna casa de oração, como agradecidos do seu livramento, sobre a sepultura do ultimo martyr da sua fe. Fez-se a obra, porém acanhada e mesquinha, como quasi todas as construcçôes d'essa epocha.

Perseverou por longos annos a ermidinha consagrada á Mae de Deus, até que veiu a arruinar-se; e a devoção, arrefecida pelo correr dos lempos, e olvidada das lembrancas do martyr que allí jazia, deixou ficar em ruinas o padrão, humilde mas piedoso, da restaurado de Cintra do poder dos infieis.

Esta é a lenda popular, não auctorisada por documento algum ou memoria escripta respeitavel. Entretanto, os que acreditam n'ella, pretendem que o padre Gaspar Preto, que no anno de 1540 edificou allí uma ermida, dedicada a Nossa Senhora de Monserrate, de quem o sitio tomou o nome, fôra reedificador e nao fundador, corno geralmente se cré. Dizem mais, que a imagem da Virgem, de alabastro, que se venerava na dita ermida, fora por elle proprio comprada em Roma; e que, de regresso á patria, visitando um dia o logar ermo da serra de Cintra, onde se viam os restos da antiga ermidinha, se lembrára de fazer reviver o culto de Nossa Senhora no mesmo logar onde o tivera logo depois do resgate d'aquella térra. E quanto ao titulo da Senhora, ac- crescentam que lh'o dera o padre Gaspar Prcto, em recordação da visita que fez, na sua volta de Roma, ao celebrado sanctuario de Nossa Senhora de Monserrate, que se venera na Hespanha, no meio de uma serrania fragosa e alcantilada.

De tudo isto o que se pode ter por certo é a fundação ou reconstrução da ermida feita por aquello padre. N'esse seculo (XVI) pertencia aquella collina, com mais alguns terrenos junto da raiz d'ella, ao hospital de -Todos os Santos, em Lisboa. No seculo seguinte aforou o dito hospital esta propriodade a algum membro da familia Mello de Castro, ou a pessoa que depois a transmittiu a essa familia, pois que no principio do seculo XVIII estava de posse d'ella Caetano de Mello de Castro, vice-rei da India, e casado com D. Marianna de Faro, filha dos segundos condes da Ilha do Principe. Fallecendo aquelle fidalgo na India, em 1718, declarou no seu testamento, feito n'esse anno, que vinculara a sua quinta da Bella Vista ou de Monserrale, na serra de Cintra. Esta disposição foi levada a effeito com as formalidades da lei por seu filho e successor, Antonio de Mello de Castro, que morreu victima do terremoto de 1 de novembre de 1755. Nao tendo deixado filhos, passou a casa a seu irmão Francisco de Mello de Castro, que serviu tambem na India, como seu рае e avô.
N'este decurso de tempo fui muito melhorada aquella quinta, e construiram-se no alto d'ella umas casas para residencia de verão dos seus proprietaries. Parece que ja entao se achava com alguma ruina a ermida do padre Gaspar Preto.

Francisco de Mello de Castro casou na India com D. Joaquina de Mello, que era viuva de José de Saldanha, e filha do general Martinho da Silveira de Menezes. Tendo succedido na casa d'aquelle fidalgo sua filha, ou neta, D. Francisca Xavier Marianna de Faro o Mello, que foi casada com D. Lopo José de Almeida Pimentel, esta senhora, achando-se viuva e residente em Goa, arrendou a sua quinta em Cintra a Gerardo Devisme, negociante estrangeiro estabelecido em Lisboa. Foi feito o arrendamenlo por nove anuos, a commeçar no dia 10 de julho de 1790, em que se assignou.

Gerardo Devisme era um homen de bastante riqueza e bom gosto, do que é documento a magnifica e formosa quinta e palacio de S. Domingos de Bemfica, por elle fundados para sua residencia, sob os planos e direccáo de Ignacio de Oliveira Bernardos, pintor e architecto de merecimento, e que actualmente sao propriedade e habitação de sua alteza real a serenissima infanta D. Isabel María.

Grande apreciador das bellezas de Cintra, mas nao menos dos regalos с commodidades da vida, arrendou aquella quinta a longo prazo com o intento de a plantar a seu gosto, e de edificar n'ella uma casa com as condições que desejava. Com effeito, sem lhe pesar no animo ir gastar tanto dinheiro em uma quinta alheia, embora contasse renovar o arrendamento além dos nove annos, deu começo as obras pela demolição da casa antiga e da ermida, e no seu logar lançou os fundamentos do novo edifcio.

A mais de um escripior temos visto attribuir o risco d'esta obra a Ignacio de Oliveira Bernardos. Cremos, porém, que é equivoco, procedido de ter este architecto delineado, para o mesmo Devisme, o palacio e quinta de S. Domingos de Bemfica. O que nos move dúvidas é ter sido feito o arrendamento ácima referido no anno de 1790, e ter fallecido Ignacio de Oliveira Bernardos no dia 18 de Janeiro de 1781. Poderia ser que Devisme lhe tivesse encommendado o desenho de uma casa de campo antes de realisar a construcçâo. Mas contra esta presumpçao adduziremos um argumento forte, que vem a ser, que o pintor Cyrillo Volkmar Machado, na sua Collecção de memorias relativas as vidas dos pintores e esculptores, architectos e gravadores portugueses, fallando com alguma largueza acerca de Oliveira Bernardos, ennumera, entre as obras que fez como architecto civil, a casa e quinta de Gerardo Devisme. Refere-se, porém, Somente a uma, que nao pode deixar de ser a de S. Domingos de Bemfica, porque era a principal residencia d'este opulento negociante, e sabe-se com certeza que no todo ou em parte foi obra d'aquelle architecto. E Cyrillo Machado foi contemporáneo e collega de Oliveira Bernardos, e morreu em 1823 com 74 anuos de edade.

Ignoramos se Devisme chegou a concluir a casa de Monserrate, pois que, muito antes de finalisar o seculo, retirou-se inopinadamente de Portugal, por motivo de desgostos que teve n'este reino. Por essa occasiao, ou mais tarde por sua morte, succedida em Londres no anno de 1798, foi vendida ao marquez de Ábrantes a sua propriedade de S. Domingos de Bemfica, cujos herdeiros a venderam tambem em 1831 á serenissima senhora infanta D. Isabel Maria. Quatro annos antes de fallecer, arrendou da sua mão a quinta de Monserrate a um opulento inglez chamado Beckford. Foi então que principiaram os fastos gloriosos d'esta propriedade, que breve passaram, como passam rápidamente todas as glorias mundanas.

Era filho o novo rendeiro de William Beckford, que se immortalisou e adquiriu immensa popularidade pela singular energía e coragem com que fallou a Jorge III em 1770, sendo entao lord maire de Londres, expondo ao monarcha, em phrases sentidas e severas, as justas queixas do povo contra o sou governo: nobre exemplo de dedicação e lealdade que o povo da capital galardoou, levantando-lhe uma estatua na casa da cámara, e, para que ficasse bem conhecida e perpetuada a memoria do feito, fez com que o esculptor représentasse aquello corajoso cidadao com o braço erguido, e segurando na mão um papel em que se liam as suas memoraveis palavras.

Por sua morte logou a seu filho, a par de um nome bemquisto e respeitado, mui avultadas riquezas; e tudo isto reunido á mais esmerada educação e aos mais apreciaveis dotes do espirito e do coracao, habilitaram o joven Beckford a contrahir matrimonio com a formosa lady Margarida Gordon, filha do conde de Aboyne, par de Escocia. A perda da esposa ao dar á luz o segundo fructo de seu ardente amor, levou-o a procurar lenitivo para a sua dor longe da terra que tinha sido testimunha da sua passageira felicidade.

Beckford veiu a Portugal na primavera do anno de 1787. Lisboa e Cintra foram as terras onde fez a sua principal residencia, e alli viveu alguns mezes no seio da mais elevada sociedade, que o distinguía com particulares provas de estima. Fez algumas digressões pelo interior do paiz, e nos fins d'esse mesmo anno continuou a sua viagem, passando á Hespanha.

Recolhido á patria, pouco tempo de repoiso ahi desfructou, pois que se viu obrigado a sair d'ella furtivamente em 1794, por se achar implicado em um processo criminal. As saudosas recordaçoes que levara de Portugal, sobre tudo de Cintra, conduziram-n'o directamente a Lisboa, e foi entâo que obteve que Devisme Ihe cedesse a quinta de Monserrate.

Dissemos acima que nao sabíamos o estado em que Devisme deixára as obras do palacio. Porém o que é certo é que Beckford emprehendeu e executou muitos e importantes trabalhos de construcçao, ou fossem para concluir ou augmentar o edificio, ou para o aformosear, e mais a quinta. Durante alguus annos que viveu n'este reino, Beckford fez d'aquellu residencia um verdadeiro paraíso, porque as bellezas naturaes da paizagem accrescentou as galas, elegancia e conchego que so a opulencia e um gosto aprimorado sabem e podem produzir, dando realce e animação a tudo isso com os encantos da mais alegre e espirituosa convivencia, entretida pelo condão da hospitalidade franca, benevolente e graciosa.

N'esse trato intimo que teve com muitas das principaes familias da corte, enamorou-se Beckford de uma gentil donzella, vergontea bastarda da antiga e nobilissima estirpe dos Marialvas. E a tal ponto se rendeu aos attractives da joven formosura, que chegou a solicitar, dizem, a sua mão e um titulo de nobreza, resolvido a fixar n'este paiz a sua residencia. Porém, apesar das immensas riquezas que possuia, e que tâo fidalga e generosamente dispendia; apesar do fausto e ostentação do seu viver, e da nobreza da familia que nao desdenhára recebel-o no seu seio; apesar das vivas sympathias que sabia inspirar a quantos o tratavam, pela influencia da illustração e graça do seu espirito, e da lhaneza e affabilidade das suas maneiras; nao obstante todas essas poderosissimas condiçoes, nao conseguiu o que pretendía *.

Ou o orgulho da nobreza, ou a differença de religião, e talvez ambas as coisas, armaram de inflexivel recusa o marquez de Marialva. E da rainha D. Maria I apenas por graça única alcançou que esta soberana solicitasse e obtivesse del-rei de Inglaterra o perdão para elle.

Ferido no seu pundonor e na sua mais cara affeição, Beckford abandonou o paiz que ja amava como patria adoptiva, e depois de viajar por França e Italia, voltou para Inglaterra, onde procurou distrahir as recordaçoes da esposa e as saudades da amante com a construcçao e decorações da sua sumptuosa propriedade de Fontill, que se tornou uma residencia verdaderamente digna de um soberano, pois que á grandeza e magnificencia do edificio juntava-se a riqueza dos movéis, dos primores de arte e preciosidades de todo o genero que encerrava, entre as quaes se viam muitos objectes que recordavam a sua estada em Portugal.

Beckford morreu de edade avancada, e alguns annos antes de fallecer teve a honra de receber em sua casa sua magestade fidelissima, a joven rainha D. Maria II, chegada do Brasil havia pouco, e que allí foi admirar a sua famosa galería de quadros e outras soberbas collecções de objectos de arte, que faziam d'aquelle palacio uma singular maravilha da Inglaterra, e que elevaram o seu preço, no leilão disputadissimo que de tudo se fez depois da morte de Beckford, á immensa somma de 340:000 libras esterlinas 2.

Depois da saida de Beckford de Portugal, a quinta e palacio de Monserrale foram arrendados a diversas pessoas. Porém a falta de tratamento, junto á accão

1 Beckford occupava na sua patria uma posição social tão respeitavel, que a sua filha Suzana Euphemia. cujo nascimento custou a vida а sua infeliz mãe, veiu а ser duqueza de Hamilton na Escocia, duqueza de Brandon na Inglaterra, e duqueza de Chatellerand em Franca,

2 Na sua primeira viagem a Portugal Beckford escreveu uma serie de cartas curiosissimas, que retratam ao natural a corte da rainha D, María I. A segunda viajem de Beckford a Portugal forneceu аssumpto ao nosso collaborador e muí distincte escriptor, o sr. Rebello da Silva, para compor um livro que intitulou Lagrimas e thesouros, lindo romance com que enriqueceu a littaratura patria.

destruidora do tempo, determinaram a rápida decadencia d'esta propriedade, que chegou, em fim, a completo estado de ruina. Concorreram muito para isso, sem dúvida, os acontecimentos políticos do principio d'esté seculo. As invasoes francezas, os sacrificios que ellas impozeram á nacâo, a partida da familia real para o Brasil e da maior parte da nobreza da capital, obstaram certamente a que alguma familia poderosa, procurando ir passar os veröes n'aquella deliciosa mansao a livrasse, pelo menos, de maior ruina.

Finalmente, ao cabo de longo e completo abandono, foi subrogada ao sr. Francisco Cook, subdito britannico, pelo sr. Luiz Caetano de Castro e Almeida Pimentel de Sequeira e Abreu, que então a possuia.

O palacio, sacudindo de si o pó das ruinas, tomou uma forma mais nobre e esbelta, Enfeitou-se por fóra com columnas de marmore, com janellas gothícas de variados relevos, e com graciosas cúpulas. Adornou-se por dentro com muita variedade de marmores finissimos, entre os quaes sobresaem magnifícas columnas de porfido; com estuques e pinturas mui ricas; com lindos sobrados de madeiras diversas embutidas, formando mui bonitos desenhos: com movéis, alfaias, e obras de arte de subido custo e bom gosto, dos tempos antigos e modernos.

A quinta tambem passou por egual transformação: A numerosissima collecção de plantas exóticas e raras que encerra, umas admiraveis pela belleza das flores, outras singulares pela exquisita folhagem; a abundancia e frescura das aguas; a arte e bom gosto que presídiram á abertura das rúas, á disposicáo das plantas e á direccao dos mananciaes, auxiliados por aquelle benigno clima, por aquella natureza tão potente, que empresta allí á vegetacâo o brilho e pompas que a dos trópicos óstenta: tantas galas e encantos, realçados ainda mais pela formosura da situação, parecem realisar essas vivendas de fadas, creação phantastica dos poetas nos arrojados vôos da sua ardente imaginação.

A esta quinta de Monserrate, que, afora os pomares, é toda de regalo, annexou O sr. Cook outra propriedade, denominada do Espirito Santo, toda consagrada à lavoira segundo os processes e instrumentos mais modernos; o que constituí; uma quinta modelo. A nossa gravura é copia de uma photographia. Sobre a situação de Mouserrate veja-se o volume e paginas citadas no começo d'esté artigo.
I. DE VILHENA BARBOSA.

p.185 - 187

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